Artigo Convidado

Inovando no Desenvolvimento de Profissionais da Gestão Pública: O Caso do Programa de Desenvolvimento de Lideranças da Escola Nacional de Administração Pública – Enap

Innovating on the development of public management professionals. The case of the Leadership Development Program at the Brazilian National School of Public Administration – Enap

Innovando el desarrollo de profesionales de gestión pública. El caso del Programa de Desarrollo del Liderazgo de la Escuela Nacional de Administración Pública de Brasil – Enap.

Michael Barzelay

London School of Economics, Reino Unido

Humberto Falcão Martins

Fundação Getúlio Vargas, Brasil

Pedro Vilela

Escola Nacional de Administração Pública, Brasil

Paulo Marques

Escola Nacional de Administração Pública, Brasil

Inovando no Desenvolvimento de Profissionais da Gestão Pública: O Caso do Programa de Desenvolvimento de Lideranças da Escola Nacional de Administração Pública – Enap

Administração Pública e Gestão Social, vol. 11, núm. 4, 2019

Universidade Federal de Viçosa

Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-SinDerivar 3.0 Internacional.

Aprovação: 14 Agosto 2019

Publicado: 01 Outubro 2019

Resumo: Este trabalho trata de uma nova abordagem, na forma e no conteúdo, de desenvolver a prática profissional de gestores públicos orientada por design, elaborada pelo professor Michael Barzelay, objeto de seu último livro “Public management as a design-oriented professional discipline” (2019). Relata a forma como esta abordagem foi colocada em prática na Escola Nacional de Administração Pública (Enap) do Governo Federal do Brasil entre 2016 e 2019 e os resultados positivos decorrentes para os participantes. Foi possível comparar os efeitos da abordagem nas turmas que a adoraram com os das turmas que não a adotaram. Uma avaliação econométrica e qualitativa do programa revelou efeitos positivos da abordagem relacionados à transferência de aprendizados, capacidade de estruturar problemas complexos e desenvolvimento de soluções colaborativas.

Palavras-chave: gestão pública orientada por design, solução de problemas, organização pública.

Abstract: This paper presents a new view, regarding form and content, of developing the professional practice of public managers oriented by design. This new perspective has been elaborated by professor Michael Barzelay, subject of his latest book “Public management as a design-oriented professional discipline” (2019). It analyses how this approach was set in motion at the Brazilian National School of Public Administration between 2016 and 2019 and its subsequent positive outcomes to the participants. It has been possible to set up a comparison between the effects of the perspective in the classes that implemented it and the ones that did not. An econometric and qualitative evaluation of the program pointed out positive effects of the new approach related to the learning transfer, capacity of structuring complex problems and development of collaborative solutions.

Keywords: design-oriented public management, problem solving, public organizations.

Resumen: Este documento aborda un nuevo enfoque, en forma y contenido, para desarrollar la práctica profesional de los profisionales públicos orientados al diseño, elaborado por el profesor Michael Barzelay en su último libro “Gestión pública como disciplina profesional orientada al diseño” (2019). Informa sobre cómo este enfoque se puso en práctica en la Escuela Nacional de Administración Pública (Enap) de Brasil entre los años 2016 y 2019 y los resultados positivos para los participantes. Fue posible que se compararan los efectos de las clases que lo incorporaron con las que no lo incorporaron. Una evaluación econométrica y cualitativa del programa reveló efectos positivos del enfoque relacionados con la transferencia de aprendizaje, la capacidad de estructurar problemas complejos y el desarrollo de soluciones colaborativas.

Palabras clave: Gestión pública orientada al diseño, solución de problemas, organizaciones publicas.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho trata de uma nova abordagem, na forma e no conteúdo, de desenvolver a prática de profissionais que atuam na gestão de organizações públicas. Relata a forma como esta abordagem foi colocada em prática na Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e os resultados decorrentes para os participantes.

Esta nova abordagem vem sendo elaborada pelo professor Michael Barzelay, objeto de seu último livro “Public management as a design-oriented professional discipline” (2019), e parte do princípio de que a prática profissional gerencial em organizações públicas requer essencialmente habilidades de solução de problemas e que isto deve ser feito por meio do desenvolvimento de competências de design, argumentação, dramatização e aprendizado de conhecimentos profissionais sobre gestão pública (que usualmente se apresentam sob a forma de “teorias propositivas”). A abordagem também enfatiza que o desenvolvimento destas competências deve valer-se de um tipo de estudo de caso baseado em design.

Em 2016, a Enap decidiu adotar a abordagem do prof. Barzelay em parte do seu Programa de Desenvolvimento de Lideranças (PDL), voltado para média gerência das áreas de suporte dos ministérios (gestão de pessoas, tecnologia da informação, logística, orçamento e transformação de serviços). O PDL se estendeu até 2019 e, dentre as sete turmas realizadas até agora, cinco incorporaram a nova abordagem em um módulo de gestão pública (MGP), possibilitando um experimento natural no qual foi possível comparar os efeitos da abordagem nas turmas que a adotaram com os das turmas que não a adotaram.

Ao fim, os efeitos da nova abordagem se mostraram muito promissores. Uma avaliação econométrica e qualitativa do programa[1] revelou efeitos positivos do módulo de gestão pública relacionados à transferência de aprendizados, capacidade de estruturar problemas complexos e desenvolvimento de soluções colaborativas.

O texto está organizado em mais 4 seções, além desta. A seção 2 estabelece uma narrativa do PDL. A seção 3 sintetiza a nova abordagem que iluminou o MGP, cujo proveito pretende-se demonstrar. A seção 4 apresenta a avaliação que demonstra o proveito da nova abordagem. A seção 5 tece considerações finais.

2. O PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO DE LIDERANÇAS DA Enap

A Figura 1 ilustra a linha do tempo do PDL, revelando seus principais eventos e participantes – e que servirá de guia para esta seção, proporcionando uma delimitação de partida. Inicialmente, é possível identificar três fluxos. Primeiro, um espaço do PDL propriamente dito, dentro do escopo deste trabalho, desde seus eventos antecedentes. em 2016, até as recentes edições de 2019. Segundo, um fluxo paralelo que corresponde à síntese de ideias que vem sendo elaborada pelo prof. Barzelay. Terceiro, um fluxo de eventos posteriores, de replicação do PDL em outros contextos.

Figura 1. Linha do tempo do PDL.
Figura 1. Linha do tempo do PDL.

O fluxo do desenvolvimento da nova abordagem pelo prof. Barzelay tem raízes na sua própria trajetória acadêmica e profissional. Este evento é um fluxo de atividades de síntese de ideias, publicação (o referido volume a ser lançado em 2019 e projetos de outras publicações), interações deste processo com programas acadêmicos na London School of Economics and Political Science (LSE) ministrados pelo prof. Barzelay, pesquisas de campo, a formação de uma comunidade de aprendizado a partir de professores-visitantes na LSE e outros agregados, e a propagação destas ideias em círculos de fomento à políticas de gestão pública e comunidades de práticas em vários países. O fluxo da síntese de ideias do prof. Barzelay é independente, porém com uma interação significativa com o fluxo do PDL. O teor desta abordagem será detalhado no próximo segmento.

O fluxo de eventos posteriores é muito recente e consiste no interesse de apoiadores privados em financiar a aplicação da nova abordagem, com ajustes e contextualizações, em contextos diversos, tais como municípios e estados – iniciando-se com duas turmas para gestores públicos da prefeitura da cidade e do governo do estado do Rio de Janeiro. A julgar pelo interesse que os programas têm despertado junto a apoiadores privados e agentes públicos, este fluxo é bastante promissor e seguirá uma trajetória independente do PDL.

Mas o cerne desta narrativa é o fluxo do PDL, sob o domínio institucional da Enap. Fundada há mais de 30 anos, a Enap atua na formação e aperfeiçoamento dos servidores públicos. Além da formação de dirigentes e carreiras de Estado, a Enap oferece uma programação ampla e permanente de cursos de educação continuada, programas de formação corporativa, programas de aperfeiçoamento de carreiras, pós-graduação lato sensu e strictu senso, pesquisa sobre gestão pública e apoio a projetos de planejamento estratégico, desenvolvimento institucional e inovação.

Em 2016, Francisco Gaetani assumiu a presidência da Enap e incluiu em sua agenda prioritária a realização de programas de desenvolvimento gerencial de alto nível para a gerência das atividades de suporte da administração federal. Neste mesmo ano o Prof. Michael Barzelay foi convidado a ministrar um seminário na Enap em Brasília sobre desenvolvimento de líderes para o setor público e, como decorrência, é firmado um memorando de entendimento entre Enap e LSE.

Com efeito, o Programa de Desenvolvimento de Lideranças (PDL) foi lançado em 2017 com o objetivo de promover mudanças estratégicas nos sistemas estruturadores do Governo Federal. O PDL compreende um conjunto de cursos para formação interdisciplinar, integrada e aplicada dos gerentes públicos, com foco na realidade profissional, na troca de conhecimentos e na formação de redes entre os participantes (Enap, 2019a). Seu público-alvo são os gerentes de médio-escalão dos sistemas estruturadores do governo federal, nas áreas de compras e logística pública, gestão de pessoas, tecnologia da informação, orçamento e finanças e gestão de serviços públicos.

Os cursos do PDL estruturam-se em quatro eixos de competências multidisciplinares: gestão pública, desenvolvimento gerencial, inovação e um eixo técnico, que varia conforme o tema do curso. Esses eixos de competências convergem nas oficinas de design thinking do Desafio Inovação, quando os participantes usam as capacidades analíticas, a visão de contexto político-institucional e as ferramentas técnicas aprendidas no curso para resolver uma situação-problema real. Além do design thinking, os cursos usam diferentes metodologias e abordagens baseadas em teorias de aprendizagem de adultos, como sala de aula invertida, estudos de caso, role-playing, visual thinking, mentoring, aprendizagem baseada em problemas e entre pares. A Enap usa diferentes propostas conceituais e metodológicas para promover a aprendizagem de adultos, a exemplo de abordagens problematizadoras ou orientadas a problemas, estudos de caso ou role-playing.

A identificação das necessidades de aprendizagem do público-alvo ocorreu por meio de grupos focais com a participação de especialistas, representantes dos órgãos centrais e dos próprios gerentes dos sistemas estruturadores, com o objetivo de identificar os principais problemas relacionados às suas atividades, suas necessidades aprendizagem e as restrições impostas por suas rotinas, como a escassez de tempo e de recursos. A partir daí, foram definidos quatro eixos de conteúdos para o PDL. O Quadro 1 abaixo apresenta os conteúdos de cada eixo.

Quadro 1. Conteúdos do PDL.

Gestão de Pessoas

Gestão Pública

Desenvolvimento Gerencial

Desafio Inovação

- Gestão do conhecimento; - Qualidade de vida, saúde no trabalho e aposentadoria; - Estratégia e governança em gestão de pessoas; - Seleção, desenvolvimento e movimentação de pessoas; - Gestão do desempenho e reconhecimento; - Inovação e gestão da mudança.

- Fundamentos da gestão pública; - Definindo desafios para solução de problemas; - Explorando alternativas futuras com projetos de inovação; - Usando projetos para planejamento estratégico da organização pública.

- Práticas e atitudes do gestor; - A comunicação como aspecto essencial da gestão; - Relações gerenciais como instrumento de mudança; - O engajamento e a confiança como pilares da relação.

- Exploração do problema; - Definição do desafio; - Imersão no problema; - Modelo de negócio; - Prototipação; - Dramatização e pitch; - Apresentação dos projetos de inovação.

Fonte: Enap.

Posteriormente, foram definidos os objetivos de aprendizagem, baseados nos resultados dos grupos focais, que identificaram os principais problemas dos sistemas estruturadores da administração. O Quadro 2 abaixo apresenta os objetivos de aprendizagem de cada eixo.

Eixos de conhecimento

Objetivos de aprendizagem

Técnico (Gestão de Pessoas, Tecnologia da Informação, Orçamento e Finanças e Transformação de Serviços)

- Reconhecer o papel estratégico do gerente de (Gestão de Pessoas / Tecnologia da Informação (TI) / Orçamento / Transformação de Serviços) frente aos principais atores, estruturas e referenciais normativos do ecossistema em que atua. - Aplicar conceitos, técnicas e metodologias e boas práticas de governança e gestão de (Pessoas / TI / Orçamento / Serviços) para transformar processos, melhorar o desempenho das equipes e resolver problemas públicos. - Identificar oportunidades para inovação na área de gestão (Pessoas / TI / Orçamento / Serviços), a partir da análise de tendências mundiais e de experiências e casos de sucesso de outras organizações. - Aplicar os conhecimentos adquiridos no eixo Técnico na estruturação do problema e na definição da solução do Desafio Inovação.

Desenvolvimento Gerencial

- Perceber como o próprio estilo e as atitudes de liderança influenciam no clima da equipe e nos resultados alcançados, à luz das principais práticas e teorias contemporâneas de gestão de equipes e liderança. - Identificar as dinâmicas e os principais processos para sustentar uma gestão de alto desempenho das equipes e conduzir processos de mudança. - Aplicar técnicas e ferramentas para criar equipes de alto desempenho, como o planejamento e o monitoramento de resultados, a condução de conversas difíceis e a gestão da cultura organizacional. - Aplicar os conhecimentos adquiridos no eixo Desenvolvimento Gerencial na estruturação do problema e definição da solução do Desafio Inovação.

Gestão Pública

- Reconhecer a importância e as qualidades da imaginação e da verdadeira ação gerencial para resolver problemas e criar valor público. - Empregar recursos tais como sensemaking, argumentação, debate, design e dramatização para implementação de mudanças em organizações e programas públicos. - Utilizar teorias e modelos da gestão pública, da administração e do design como referenciais para o desenvolvimento da estratégia em organizações e programas públicos. - Aplicar os conhecimentos adquiridos no eixo Gestão Pública na estruturação do problema e na definição da solução do Desafio Inovação.

Desafio Inovação

- Definir os principais conceitos e as especificidades da inovação no setor público, incluindo as barreiras e facilitadores encontrados no ambiente de inovação. - Estruturar problemas públicos complexos. - Analisar problemas públicos complexos. - Desenvolver soluções inovadoras colaborativas com foco na criação de valor público. - Demonstrar as qualidades e a utilidade das soluções inovadoras para as partes interessadas, por meio da prototipação e da apresentação executiva do projeto.

Fonte: Enap.

A realização ocorreu em 2017, 2018 e 2019. O piloto do PDL foi lançado em 2017, chamado Programa Lideranças em Logística Pública. Entre fevereiro e junho de 2018, foram realizados mais quatro cursos: Lideranças em Gestão de Pessoas (GP), Lideranças em Tecnologia da Informação (TIC), Lideranças em Orçamento e Finanças (OF) e Lideranças em Transformação de Serviços (TS). Os cursos Gestão de Pessoas e Tecnologia da Informação possuíam o eixo Gestão Pública, enquanto os cursos Orçamento e Finanças e Transformação de Serviços não possuíam o eixo. Em 2019, como continuidade do PDL, foram ofertados mais duas turmas, uma para gestão de pessoas, outra para tecnologia da informação.

O que está em questão é em que extensão as turmas que contiveram o módulo de gestão pública portadora da nova abordagem de fato se diferenciam das demais em termos de impacto do programa, que será desenvolvida na seção 4 deste trabalho.

3. GESTÃO PÚBLICA COMO UMA DISCIPLINA PROFISSIONAL ORIENTADA POR DESIGN

Este segmento discorrerá sobre a abordagem que iluminou o desenho do módulo de gestão pública: gestão pública como uma disciplina profissional orientada por design. O que se pretende demonstrar neste trabalho, a partir da experiência descrita no segmento anterior, é o proveito desta abordagem.

A abordagem da Public management as a design oriented professional discipline (Barzelay, 2019) é uma síntese complexa e sofisticada. Primeiro, por sua abrangência: a quantidade de elementos sintetizados. Segundo, por sua profundidade: a reelaboração dos elementos sintetizados, o que por vezes implicou na elaboração de sínteses menores e na desconstrução/reconstrução de elementos para serem (re) sintetizados. Terceiro, pelo alcance das implicações sobre teoria e prática da gestão pública nos diversos domínios institucionais onde estas coisas acontecem (organizações públicas e academia).

Não é tarefa simples descrever (sob narrativa ou de forma esquemática) ou explicar tal síntese porque seus elementos podem se combinar de múltiplas formas para formar diferentes narrativas. Mas, tomemos como elemento de partida a ideia da gestão pública como uma prática profissional – dentre as muitas coisas que gestão pública pode ser: um termo, um conjunto de ideias/teorias, uma atividade profissional, uma disciplina profissional (um conjunto de conhecimentos que a prática requer). Como atividade profissional, os sujeitos desta atividade, os profissionais que atuam na gestão de organizações públicas, são solucionadores de problemas ao desempenhar a função gerencial das organizações públicas. Estes três primeiros elementos destacados merecem aprofundamento.

O elemento solução de problemas vem de Simon, que considerava solução de problemas (a busca de condições preferíveis) a essência de qualquer prática profissional – ele se referiu a várias, mas não mencionou expressamente gestão pública. Toda e qualquer prática profissional é aplicação de conhecimento para solução de problemas. Daí a necessidade não apenas de se gerar conhecimentos[2] sobre distintos objetos de solução de problemas num imenso leque de atuações profissionais, mas, em igual importância, a necessidade de se conceber métodos que permitam que o conhecimento possa ser bem aplicado na prática – na lida com os problemas.

O design cumpriria este papel, na medida em que fornece um método estruturado de solução de problemas: enunciar o problema; modelar uma solução; planejar sua realização; realizá-la; avaliá-la. Gerir por design, não de forma acidental, torna as decisões mais racionais, inclusive na medida em que proporciona a modelagem de alternativas a serem objeto de escolha num processo decisório. Mas a forma como Simon originalmente concebeu um método de design para solução de problemas parece hoje simplista (baseado no faseamento de análise, síntese e especificação). Por estas razões, Simon merece ser reconstruído a partir de concepções mais modernas de design e também para conformar-se explicitamente ao campo da gestão pública.

Design tornou-se um conceito mágico contemporâneo, em particular, no campo da gestão, design thinking tornou-se uma abordagem de design do momento que, embora possua seus predicados (visão do cliente/usuário, demandas, criar empatia), não ocupa lugar central nesta síntese. Para além do sentido de objeto (design como um modelo/protótipo a ser seguido/realizado), importa aqui explorar o sentido de método (de concepção de soluções sob a forma de projetos de design) e de processo (projetos de design são também processos contextualizados ou scenario processes).

Como método, projetos de design se prestam deliberadamente a criar algo com uma intenção clara. Envolvem criação e decisão de forma entremeada.

Designing can be elaborated into the constitutive functions of analysis, synthesis, testing/evaluation, and wrap-up. Decision-making can be elaborated into project-formulation, project-monitoring, alternative-assessment, deliberation on best options, authoritative choice, and project-termination. (Barzelay, 2019b, p. 3)

Pensados de uma forma sequencial, projetos de design envolvem uma fase inicial de fuzzy front end, front end e back end. Fuzzy front end refere-se à “confusão inicial” onde é essencial entender a situação (sense-making), identificação/reconhecimento/observação e elaboração/compreensão do local-presente; e conhecer os precedentes de design (que são uma fonte de conhecimento fundamental). O front end é uma fase de estruturação do problema (framing), envolvendo entendimento da estrutura causal (o que é causa e o que é consequência), do escopo/limites (o que faz parte e o que não faz), que permite identificar os alvos de atuação. Tudo isto é entremeado de forma iterativa com a estruturação da solução, resultando em alguma formalização do design sob a forma de um conceptual design (contendo o conjunto mínimo de funcionalidades e especificações daquilo que se pretende criar) e, posteriormente, um embodiment design (um desenho de concretização, com especificações detalhadas para implementar o conceptual design). O back end representa a fase de realização e avaliação.

Como processo, projetos de design são também processos situacionais (scenario processes) porque ocorrem dentro de contextos, que canalizam suas atividades para gerar um resultado intencional. Pensar projetos de design como scenario processes implica em posicioná-los como mecanismos de geração de um fenômeno propositivo (seja uma organização, um programa etc.).

Solução de problemas não requer apenas habilidades de design, aí incluído o sense-making. Há duas outras habilidades essenciais: argumentação e dramatização. Trata-se da argumentação prática, não científica, para fins de comunicação e convencimento a respeito de ideias, presente, por exemplo, na retórica estruturada de Cicero: exordium (apresentação do tema), narratio (contextualização, narrativa), divisio (as questões), peroração (recapitular e impressionar), conclusão. Por sua vez, a dramatização refere-se ao conceito cunhado por Erving Goffman (1959) segundo o qual os indivíduos dramatizam (no sentido de representar) suas interações sociais e, portanto, o processo de construção social da realidade. O mesmo pode ser pensado em relação à dramatização da atividade profissional no sentido de validar objetos de design.

Voltando alguns parágrafos: como atividade profissional, os sujeitos desta atividade, os profissionais que atuam na gestão de organizações públicas, são solucionadores de problemas ao desempenhar a função gerencial das organizações públicas. Como solucionadores de problemas, devem possuir habilidades de sensemaking, design, argumentação e dramatização. Tratemos do “desempenhar a função gerencial das organizações públicas”, porque é disso que trata a gestão pública.

O elemento função gerencial é aquele que qualifica a gestão. A referência seminal é Fayol, para quem as funções da empresa (enterprise-functions) seriam gestão, técnica, comercial, segurança, contabilidade e finanças. Importante anotar que o conceito de empresa (enterprise) envolve não apenas a organização, mas o negócio. Nesse sentido, a organização é um mecanismo para satisfazer a intenção do negócio. Mas o que interessa destacar nesta concepção é o que Fayol denomina de funções gerenciais: planejamento, organização, direção, coordenação, controle. A função gerencial possibilita as demais. Trazer Fayol para o século XXI significa menos atualizar sua nomenclatura - por exemplo, substituindo direção por liderança e controle por monitoramento, ou revendo-se a função de segurança à luz de imperativos de sustentabilidade. Significa mais transpor a lógica causal do tipo mecanismo (organização), intenção (negócio) e, sobretudo, pensar que solução de problemas orientada por design é uma forma mais racional de desempenhar a função gerencial das organizações públicas.

E aí surge o elemento organização pública, que à exemplo da empresa definida por Fayol, possui uma dimensão organizacional (o mecanismo) e outra equivalente ao “negócio” (intenção), que é gerar valor público – muito em linha com a concepção de Moore.

An enterprise is a purposeful phenomenon with stereotypical properties, including enterprise-intent, value-chains, transition paths, and organizations. (Main precedent: Fayol.) Public organizations are a variant form of enterprise; conceptually, they are a sub-central abstract case of the category, “enterprises.” (Barzelay, 2019b, p. 2).

Com efeito, mechanism thinking ou mechanism-intent thinking é uma forma de pensamento sistêmico, um exercício de lógica funcional, útil para compreender os objetos de design e ideias sobre eles (para elaborar, entender e avaliar teorias propositivas sobretudo, inclusive sobre organizações públicas). Exercitar mechanism thinking requer perceber o funtional whole, o scenario process na sua totalidade e as intenções/propósitos, as funções (o que é), as atividades (como é), seja por engenharia reversa ou forward engineering. Barzelay propõe uma linguagem padrão (pattern language) para aludir aos fenômenos propositivos: “Scenario-context channels scenario-activity, involving interactions among flows of activity [activities enable activities] , usually on a range of social scales. Scenario-activity eventuates in scenario-outcomes” (Barzelay, 2019b, p. 2).

A conclusão até aqui é que atuar em uma organização pública como solucionador de problemas mediante o uso de métodos de design e pensando e tratando a organização pública como um mecanismo é uma forma superior de geração de valor público.

Design projects are scenario-processes that perform an enterprise’s designing and decision-making in functions in project-like fashion. The desired enterprise-impact of design-projects is the incorporation and use of enterprise-mechanisms that aim to neutralize an enterprise’s challenge-handicaps for the sake of effectuating enterprise-intent. (Barzelay, 2019b, 2).

Entretanto, um grande obstáculo para que isto aconteça é que os profissionais que atuam na gestão de organizações públicas são formados num modelo que lhes fornece teorias cientificas (modelos que buscam explicar como o mundo funciona), mas há uma grande lacuna sobre como aplicar bem as teorias para solucionar os problemas. O pressuposto desta crítica é que a aplicação acidental de conhecimentos teóricos nos processos decisórios organizacionais não otimiza o processo de geração de valor público tanto quanto um tratamento baseado em solução de problemas orientada por design.

Barzelay encontra em Augier & March (2011) a revelação de que, na tradição acadêmica norte americana a partir dos anos 50 do século passado, que tem sido copiada em boa parte do mundo, as escolas de gestão se espelharam no modelo da escola de gestão moderna e na tradição harvardiana. A escola de gestão moderna espelhou-se na escola de medicina moderna, com foco na produção e disseminação de conhecimentos científicos para os acadêmicos e profissionais da área. Já a tradição harvardiana da escola de gestão herdou a tradição também harvardiana de estudos de casos jurídicos (casuistry) como recurso para aprimorar o juízo gerencial dos profissionais em processos de análise e tomada de decisão. É evidente que ambos modelos apresentam prós e contras (na medida em que teorias são fundamentais para sense-making e problem framing; além dos potenciais do método de estudo de caso como recurso para exercício do mechanism thinking), mas apenas a teoria não assegura um bom projeto de design e nenhum dos dois modelos atentou para a explicita e deliberada produção de conhecimento que permita que profissionais possam utilizar os conhecimentos teóricos de modo mais eficaz para solução de problemas – em linha com que almejava Simon e sua ciência do design.

Por outro lado, acrescentaríamos que as escolas de governo muitas vezes se perdem numa mescla de teorias do momento com conhecimentos formais-descritivos e deontológicos e aplicação de instrumentos e ferramentas de gestão específicos. Ainda resta outro lado do problema: a capacitação gerencial tradicional, muito frequente na educação executiva aplicada ao setor público, tende a focar no desenvolvimento de competências gerenciais tradicionais (alocativas, estratégicas, interpessoais e informacionais), mas não naquelas relacionadas à solução de problemas conforme aqui indicadas (sense-making, design, argumentação e dramatização).

Logo, capacitar profissionais que atuam na gestão de organizações públicas em solução de problemas, desenvolvendo, por meio de Estudos de caso focados em design (design-focused case studies), suas habilidades de sense-making, design, argumentação e dramatização, melhoram suas habilidades em solucionar problemas e o exercício de sua função gerencial, gerando mais valor público.

Professional practice in enterprises consists in mechanism-intent thinking applied to enterprise-challenges through design-projects. It’s just an idealization, but it dramatizes what is distinctive about the idea of design-oriented professional practice, concerned with enterprises and especially their management. (Barzelay, 2019b, p. 2)

Estudos de caso focados em design incorporam a perspectiva de projetos de design à tradição de estudos de caso harvardiana, exercitando mechanism thinking sobre um objeto de design (um fenômeno propositivo), permitindo a desconstrução e reconstrução de seus elementos constitutivos (mediante engenharia reversa ou progressiva), identificação de precedentes e modelagem de alternativas de design, valendo-se de recursos de argumentação e dramatização.

À luz da narrativa sobre o PDL e da abordagem nela aplicada, é possível agora caracterizar o PDL, nas turmas que contemplaram o módulo de gestão pública, como um mecanismo-intenção, conforme ilustrado na Figura 2.

Figura
2. PDL como mecanismo-intenção.
Figura 2. PDL como mecanismo-intenção.

Assim, para efetuar a intenção de melhorar a prática profissional de gestores públicos, a partir de projetos de design e do desempenho da função gerencial em organizações públicas, desenhou-se um mecanismo baseado na concatenação de duas grandes atividades que possibilitam o fortalecimento de competências profissionais:

·        Expansão do conhecimento profissional sobre organizações públicas, das funções gerenciais a serem desempenhadas, de enfoques de solução de problemas envolvendo funções gerenciais em organizações públicas e de precedentes a respeito de como enfrentar desafios. A expansão de conhecimento relacionado a estas questões se dá predominantemente a partir de teorias propositivas, o que possibilita o

·        Desenvolvimento de habilidades de sense-making, design (bem entendido, de modelagem de soluções por meio de projetos de design), argumentação racional e dramatização persuasiva, estas duas últimas para estruturar o processo de decisão.

O módulo de gestão pública em turmas do PDL buscou colocar em prática esta concepção de gestão pública como uma prática profissional orientada por design. O próximo segmento buscará avaliar seus resultados.

4. AVALIAÇÃO DO MÓDULO DE GESTÃO PÚBLICA DO PDL

Neste segmento demonstra-se que a abordagem de gestão pública como uma prática profissional orientada por design, que pautou o módulo de Gestão Pública do PDL, diferenciou-se e obteve significativo proveito.

Para a avaliação dos resultados dos cursos do PDL, foi usado o Modelo de Avaliação de Kirkpatrick, que compreende quatro níveis interdependentes: reação, aprendizagem, mudança de comportamento e resultados para a organização (Kirkpatrick & Kirkpatrick, 2016). A própria Enap realiza, de forma contínua e padronizada, avaliações de reação e aprendizagem em seus cursos. Nesses níveis, a avaliação aborda a execução dos cursos e seus resultados imediatos, principalmente em relação à satisfação dos participantes com o curso. Para avaliar o terceiro e o quarto níveis de resultados do PDL, que conforma a avaliação de impacto (foco desta análise), a Enap contratou uma avaliadora independente.

No terceiro nível, a mudança comportamental está relacionada aos resultados intermediários que conectam os cursos com o seu objetivo final (Abbad & Borges-Andrade, 2004), que é promover mudanças estratégicas e a inovação no governo federal. Este nível inclui, portanto, a análise da transferência pelos/as concluintes do curso, das competências para o local de trabalho e a respectiva mudança na qualidade do trabalho individual, assim como outros aspectos que facilitam ou dificultam essa transferência, como suporte organizacional, motivação, autoconfiança e retenção das competências.

O quarto nível é referente às mudanças na organização, ou seja, observa-se se essa transferência gerou, de fato, mudanças estratégicas e inovação no governo federal, por meio da transferência para a equipe do/a concluinte, de mudanças efetivas no exercício da liderança e da gestão ou da melhoria dos resultados do setor onde o/a concluinte trabalha.

O objetivo da avaliação de impacto foi observar o efeito causal dos cursos do PDL em relação aos seus propósitos: “se, como, e em que medida o programa atinge seu objetivo final” (Noronha, 2018). Essa avaliação compreendeu o uso de quatro métodos: análise econométrica e estatística, questionários abertos, entrevistas individuais e estudos de caso, que conformam a análise qualitativa.

A econometria foi priorizada em relação à estatística descritiva, usada para o primeiro nível de avaliação, porque permite observar o efeito isolado de uma variável sobre outras (Stock & Watson, 2012), sendo possível estabelecer relações de causalidade sob determinadas condições e identificar o impacto do PDL. Para a avaliação de impacto de todo o PDL, foi realizado um estudo de painel, que consiste em medições (nesse caso, três) ao longo do tempo, observando a evolução dos resultados (Abbad et al., 2012, p.172). O modelo de estudo de painel escolhido foi o de efeitos fixos de unidade e de tempo, já que os demais não são tão precisos para três momentos de observação, os regressores são menos consistentes ou têm premissas muito restritivas [ CITATION GRE08 \l 1046 ]. No entanto, nesse modelo, não é possível controlar por meio de variáveis não observadas, que mudam tanto ao longo do tempo como entre os concluintes (Stock & Watson, 2012, p. 389-411).

Também decidiu-se realizar um estudo controlado do eixo de Gestão Pública por meio de um experimento natural gerado pelo desenho do PDL, já que este eixo apresentou diferenciais metodológicos em relação aos demais. Os cursos GP e TIC, que formam o grupo de tratamento, tiveram o eixo de Gestão Pública, e os cursos TS e OF, que formam o grupo de controle, não tiveram. Observa-se que, entre os métodos econométricos, o estudo controlado mede o efeito causal da maneira mais rigorosa, enquanto o estudo de painel mede causalidade, e não mera correlação, apenas quando todos os seus pressupostos, que são mais amplos, são atendidos (Stock; Watson, 2012, p. 48-49). O método de estudo controlado compara ambos grupos sob a premissa de que, se os/as concluintes de TIC e GP não tivessem feito o eixo de Gestão Pública, teriam tido os mesmos resultados que os/as concluintes de TS e OF (contra fatual). Portanto, qualquer variação de comportamentos entre os grupos de tratamento e de controle poderiam ser associados ao eixo Gestão Pública. Para estimar esse efeito, foram usados modelos de diferenças-em-diferenças.

A coleta de dados quantitativos compreendeu a aplicação de três questionários de auto avaliação, aplicados presencialmente e virtualmente em junho e julho, e virtualmente em setembro e outubro e em novembro e dezembro de 2018. As taxas de resposta nas três ocasiões foram maiores que 70 por cento de concluintes dos cursos, o que gera um erro amostral menor a sete por cento no nível de confiança de 95 por cento.

Destaca-se que os questionários foram baseados em escalas de concordância (tipo Likert, com dez categorias de respostas) e, portanto, os valores derivados da análise quantitativa não têm unidade de medida implícita. Além disso, os modelos econométricos usados focam nas variações dos indicadores e nas correlações entre essas variações, sendo os números absolutos menos relevantes. Por este motivo, nas seções sobre os resultados da avaliação de impacto, apresentam-se os resultados mais relevantes para um nível de significância máximo de 0,10, facilitando a interpretação.

Já a coleta de informações qualitativas aconteceu de três formas: os questionários abertos de hetero avaliação foram aplicados virtualmente a colegas de trabalho das pessoas que participaram do curso, com 35 respostas entre agosto e setembro e com 31 respostas entre novembro e dezembro de 2018; as entrevistas foram realizadas pessoalmente com concluintes do PDL, colegas de trabalho e servidores/as da Enap, em setembro e em novembro de 2018; por fim, o formulário aberto sobre os projetos em grupo do Desafio Inovação, aplicado entre novembro e dezembro de 2018, foi respondido por dois grupos.

Além desses métodos, a consultora observou presencialmente as apresentações finais dos cursos PDL Gestão de Pessoas e Tecnologia da Informação, em 12 e 14 de junho de 2018, e explorou o ambiente virtual dos cursos, o que ajudou a contextualizar a análise dos dados coletados.

O resultado dessa análise demonstrou “que o eixo de Gestão Pública teve efeito positivo sobre o desenvolvimento de soluções colaborativas: esse indicador é 0,58 ponto maior entre as pessoas que fizeram esse eixo, considerando todas as demais variações, inclusive o tempo. Observando-se o efeito isolado dos componentes do Eixo de Gestão Pública, quais sejam, o uso de modelos e teorias para desenvolver estratégias e o emprego de competências como argumentação, debate, design ou dramatização, esses componentes, além de ter efeito sobre a colaboração, também impactam a transferência dos aprendizados do PDL para a equipe e melhoram o indicador de mudança organizacional”, (Noronha, 2018, p. 43) conforme indicados nas figuras 3 e 4 abaixo.

Figura 3. Efeito comparado do módulo de gestão
pública.
Figura 3. Efeito comparado do módulo de gestão pública.
Fonte: Noronha (2018)

Figura
4. Efeito dos comportamentos associados ao módulo de gestão pública.
Figura 4. Efeito dos comportamentos associados ao módulo de gestão pública.
Fonte: Noronha (2018)

Os resultados dos métodos qualitativos sugerem que os efeitos positivos do modulo de gestão pública podem estar subestimados. Os efeitos deste módulo poderiam ser considerados excessivamente subjetivos para serem capturados pelos indicadores operacionalizados, posto que um dos propósitos do módulo seria facilitar a mudança. Esta hipótese encontra sustento nas entrevistas, nas questões abertas e hetero avaliação.

À título de exemplo, passados oito meses da finalização dos cursos, oito por cento dos respondentes responderam expressamente nas questões abertas que o principal impacto do PDL em seus trabalhos foi a melhoria de suas habilidades de analisar problemas complexos. Da mesma forma, cinco por cento das respostas das questões abertas e da hetero avaliação também ressaltaram expressamente os efeitos positivos derivados do módulo de gestão pública.

Dada a natureza subjetiva dos objetivos do módulo de gestão pública, as entrevistas puderam fornecer mais insights sobre seus benefícios. Duas das vinte e quatro entrevistas aprofundaram a importância do módulo em suas vidas profissionais. Uma entrevistada ressalta o aumento de sua confiança em aplicar outras competências, especialmente por conta dos exercícios de role-playing:

Foi um módulo bem legal de fazer, com problemas e estudos de caso mais complexos, que requeriam maior compreensão e extrapolação a respeito do problema, a respeito de soluções. (...) E também o que a gente tinha lá de dramatização (…). Para mim, eu achei muito bom, eu abracei mesmo a dinâmica. Ao mesmo tempo, eu via também que alguns colegas não tinham... Mas aí eu acho que tinha a ver com postura. (...). É desafiador. Então você está à frente de uma pessoa ali que está contra-argumentando, porque faz parte do processo de construção de solução, você passar por isso com medo de errar... Mas eu recebi bem isso, então foi bem interessante poder conduzir desse modo. E também foi bem interessante pelo fato de serem problemas complexos, no sentido de que são várias variáveis, pelos estudos de caso que foram feitos. (...) Eu entendi que era um espaço de ousar, de experimentar, e pra mim isso foi também muito desafiador. Eu me senti desafiada e engajada nesse momento.

(...) é um exercício que é feito aqui, que te desafia, e que você sabe que depois de passar por isso, você é capaz, então ele reforça um pouco esses aspectos que eu falei, de segurança, de confiança, né. Então, (...) quem tá aqui naquele momento não é exatamente seu chefe, mas é o momento de poder incorporar esse contexto. E quando você vem para uma situação que seria mais real, você consegue poder associar “eu já passei por isso” ou “eu tenho condição de fazer isso”, então de poder sentir mais confiante pra situações mais reais. (...)

[O impacto na liderança] mudou mais de mim pra cima, porque é como se eu pudesse entregar um trabalho de qualidade diferente, no sentido de me perceberem diferente, então tem a ver com expressão, com postura, com iniciativa, até mesmo iniciativa de fazer o curso, ou de falar sobre o curso enquanto ele estava acontecendo, porque, como eu falei, eu tive que buscar outras informações que não estavam ali dentro do meu dia a dia, então eu recorri a meu chefe, a meu diretor (...). Às vezes não eram coisas que estavam no meu... ou que eu poderia ter a iniciativa de fazer isso. Então é por isso que eu digo que foi mais de mim para cima. (Noronha, 2018, p. 46 - entrevistada 5)

A habilidade para analisar problemas complexos também foi ressaltada por outro entrevistado, que enfatizou a importância do módulo de gestão pública para o seu trabalho:

A parte de Gestão Pública traz novos referenciais para você analisar as situações que você lida e que geralmente tendem a ser situações complexas, não são aqueles probleminhas pequenos que você já tem a resposta pronta. Então esse, acho que o ferramental foi muito importante (...) Na análise dos problemas, eu percebo que eu já consigo (...) perceber mais aspectos do contexto, pensar em outras alternativas, me preparar para apresentar um assunto desses. Eu acho que tem ganhos que são mais tácitos do que alguma coisa que eu possa dizer “o resultado desse trabalho saiu melhor”. (...) [Citando situação específica] Eu acho que essa questão de análise de problemas complexos se aplica, então a gente está fazendo isso, estamos trabalhando com a equipe. (...)

[O eixo de Gestão Pública] foi um curso de aplicação muito prática e ele previa simulações, apresentações (...), dramatização (...). Como é uma dinâmica de aula com tempo curto e uma turma grande, então nem todo mundo teve oportunidade, mas é enriquecedor ver o processo acontecendo. E depois, como as pessoas analisaram a situação, propuseram como deviam organizar o discurso e o conteúdo do que deveria apresentar para defender as ideias, e depois, quando o professor volta a seu papel de professor e levanta os pontos fortes e os pontos que não chegou onde deveria chegar, e o que faltou, isso é um ponto de reflexão muito forte para a gente, de buscar, de preparar melhor quando tiver que apresentar um projeto, uma proposta nova também.

Eu acho que é um dos [eixos] mais importantes, mas é que é tudo concatenado. Os outros são mais conteúdo e este estava mais na vivência do dia a dia e não era só vivência, eram técnicas de como você analisar um problema. [Dá exemplo específico em seu trabalho, em que usou um dos estudos de casos apresentados no eixo]. (...) Primeiro a gente tem que ter essa visão prospectiva, eu acho que isso está sendo legal para o grupo. Ao mesmo tempo, as pessoas ficam ansiosas (...), achando que a coisa não está funcionando. Faz parte do processo todos esses momentos. Então eu estou achando legal poder estar construindo isso com o grupo também.” (Noronha 2018, p. 47 - entrevistado 13)

Um dos participantes do grupo de controle observou que em seu curso faltava uma perspectiva mais ampla de design thinking, que é ofertada pelo módulo de gestão pública.

Uma coisa que eu acho que poderia melhorar no curso, no sentido de trazer gente que não conhece nada do assunto, é reforçar uma visão geral do que é design thinking, é a visão ampla dessa forma de pensar, que foi dada no início do curso, mas eu só consegui ter essa visão do todo no final. Só consegui enxergar (...) a importância [das ferramentas] no final. Às vezes, na prática, só depois que eu voltei para o órgão. E muita gente acho que saiu no meio do curso talvez por conta disso, por não enxergar o potencial das ferramentas logo no início. (Noronha, 2018, p. 47 - entrevistado 20)

Estas entrevistas reforçam a hipótese de que a avaliação quantitativa não observou integralmente os efeitos do módulo de gestão pública no trabalho dos participantes. Entretanto, evidencias qualitativas e quantitativas apontam efeitos positivos, complementando-se. Em conclusão, “a avaliação encontra efeito positivo do módulo de gestão pública sobre o desenvolvimento de soluções colaborativas, a condução de processos de mudança organizacional e a transferência de aprendizados à equipe. No entanto, tendo em vista que este eixo tem o objetivo de realizar uma mudança de perspectiva, cuja medição é mais subjetiva do que os demais eixos, especula-se que os indicadores quantitativos não foram tão precisos em seus resultados. Os métodos qualitativos, especialmente as entrevistas, oferecem indícios de que o impacto foi mais profundo do que aquele capturado pelos dados quantitativos. Neste sentido, destacaram-se os aprendizados relativos à capacidade de estruturar problemas complexos e os benefícios do uso das ferramentas e dramatização e dos estudos de caso.” (Noronha, 2018, p. 48-9)

Em relação às possíveis limitações e refutações desta avaliação, destaca-se que não se dispõe de informação anterior ao programa, já que, por questões logísticas, o primeiro questionário foi aplicado após a finalização dos cursos, e não durante os mesmos, como havia sido inicialmente planejado. Esse fato restringe as inferências sobre os efeitos do PDL, o que pode ser compensado pelo uso de métodos mais rigorosos, como o estudo controlado e o estudo de painel. Entretanto, ainda com essa ressalva, os resultados do impacto do PDL são variados e consistentes, e confirmados pela análise qualitativa, o que aponta para a robustez da avaliação de impacto.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho buscou apresentar a aplicação de uma nova abordagem por meio de um programa de desenvolvimento de líderes na administração federal brasileira. A nova abordagem, elaborada por Barzelay (2019), propõe que gestão pública seja considerada uma disciplina profissional orientada por design. Esta concepção enxerga gestores públicos como solucionadores de problemas, o que requer competências de sense-making; de desenvolver projetos de design; de representar ideias, organizações e problemas sob a forma de mecanismos; de argumentar; de dramatizar. Desenvolver estas competências em programas de capacitação requer recursos inovadores, como a dramatização de casos orientados por design. Esta abordagem foi adotada no desenho e execução do módulo de gestão pública presente em algumas turmas do PDL.

Avaliações quantitativa e qualitativa evidenciaram efeitos positivos do módulo de gestão pública no trabalho dos participantes. Isto constitui um elemento que corrobora a teoria propositiva de Michael Barzelay segundo a qual capacitar gestores públicos em solução de problemas, aprimorando seu sense-making, habilidades de gerir projetos de design, argumentação e dramatização, por meio de estudos de caso orientados por design, aprimora sua contribuição para a geração de valor público, na medida em que desenvolve suas capacidades de solucionar problemas, trabalhar em equipe e transformar a organização

A avaliação do módulo de gestão pública foi positiva, embora pontual em suas conclusões e limitada no espaço e no tempo. Em todo caso, isto é suficiente para que a abordagem seja validada.

Mas isto representa apenas o início de muitos desafios. Para além de impactos pontuais, gerar mudanças sistêmicas implica em escalar não apenas na quantidade de outros experimentos e profissionais envolvidos, mas nos sistemas de ensino que os promovem e também no que concerne a outros propósitos da aplicação da abordagem.

Escalar a adoção da abordagem na academia e junto a uma série de outros atores que possuem um maior envolvimento com educação para gestores públicos (desde formadores de opinião, apoiadores, financiadores privados e escolas) é um desafio que requer divulgação, convencimento, formação de professores, desenvolvimento de currículos/programas e materiais instrucionais. Há, portanto, um longo caminho pela frente. Mas há um bom começo.

Nesse sentido, espera-se que este trabalho possa servir como uma abertura de portas para o debate e para a geração de novas experiências.

REFERÊNCIAS

Abbad, Gardênia S.; Borges-Andrade, Jairo E. (2004), “Aprendizagem Humana em Organizações e Trabalho”. In: Zanelli, J. C.; Borges-Andrade, Jairo E.; Bastos, A. V. B. (Orgs.). Psicologia, Organizações e Trabalho no Brasil. Porto Alegre, Brasil: Artmed. p. 237–275.

Abbad, Gardênia; Mourão, Luciana; Meneses, Pedro; Zerbini, Taís; Borges-Andrade, Jairo E.; Vilas-Boas, Raquel (2012), “Medidas de Avaliação em Treinamento, Desenvolvimento e Educação: Ferramentas para Gestão de Pessoas”. Edição do Kindle.

Augier, Mie; March, James G. (2011), “The Roots, Rituals, and Rhetorics of Change: North American Business Schools After the Second World War”. Stanford: Stanford Business Books.

Barzelay, Michael (2019), “Public management as a design oriented professional discipline”. Edward Elgar. Cheltenham.

Barzelay, Michael (2019b), “A Note on Theorizing Professional Practice and Mechanism-Intent Thinking in Enterprises, including Public Organizations”. Mimeo.

Bryson, John M. (2018), “Strategic Planning for Public and Non-Profit Organizations: A Guide to Strengthening and Sustaining Organizational Achievement”. 5th ed. Hoboken, NJ: Wiley.

Cross, Nigel (2008), Engineering Design Methods: Strategies for Product Design, 4th ed. Chichester: Wiley.

Goffmann, Erving (1959). “The Presentation of Self in Everyday Life”. New York: Anchor Books.

Greene, W. H. (2008). “Econometric Analysis”, 6th ed. Upper Saddle River, NJ: Prentice Hall.

Kirkpatrick, J. D.; Kirkpatrick, W. K. (2016), “Kirkpatrick’s Four Levels of Training Evaluation”. Kindle Edi ed. [s.l.]: [s.n.].

Noronha, Samira (2018), “Programa de Desenvolvimento de Lideranças, Avaliação de Impacto: Relatório Final”. Brasília, Brasil: [s.n.].

Porter, Michael E. (1985), “Competitive Advantage”. New York: Free Press.

Simon, Herbert A. (1996), “Sciences of the Artificial”, 3d ed. Cambridge, MA: MIT Press.

Stock, J. H.; Watson, M. W. (2012), “Introduction to Econometrics: Global Edition”. [s.l.]: US: Pearson Education. p. 48-49.

Van Aken, Joan E.; Berends, Hans (2018), "Problem-solving in Organizations: A Methodological Handbook for Business Students”. Cambridge: Cambridge University Press.

Notas

1 A Enap desenvolveu em 2018 um avaliação de impacto do Programa de Desenvolvimento de Lideranças implementado. NORONHA, S. Programa de Desenvolvimento de Lideranças, Avaliação de Impacto: Relatório Final. Brasília, Brasil: [s.n.], 2018.

2 Há profundas implicações epistemológicas. Simon propôs que as ciências do artificial fossem ciências do design (baseada em habilidades de projetos de design) em vez de ciência normal (baseadas apenas em conhecimento técnico e científico). O objeto da primeira seriam fenômenos propositivos e artificiais; o da segunda seriam fenômenos naturais. Teorias propositivas (purposive theories) são teorias filosóficas, conjunto de ideias e argumentos voltados à persuasão, com vistas a criar fenômenos propositivos baseadas em afirmações normativas e positivas, tipo de conhecimento codificado das ciências do design. Já teorias científicas são categorias para explicar como o mundo funciona, sem afirmações normativas, a partir da ideia de ciência normal. O campo de conhecimento da gestão é profundamente permeado por teorias propositivas, tais como, por exemplo a cadeia de valor e modelo de vantagem competitiva de Porter (1985), o triângulo estratégico e valor público de Moore (1995) e os ciclos de gestão estratégica de Bryson (2018).

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