Loading [MathJax]/extensions/MathML/content-mathml.js

Artigos

A Burocracia de Nível de Rua na Implementação do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF): Percepções e Traduções de Normativas nas Políticas Públicas

The Street-level Bureaucracy in the Implementation of the Service of Protection and Integral Care for the Family (PAIF): Perceptions and Translations of Norms in Public Policies

La burocracia de calle en la implementación del Servicio de Protección y Atención Integral a la Familia (PAIF): Percepciones y Traducciones de las Normas en las Políticas Públicas

Carla Bronzo
Escola de Governo, Fundação João Pinheiro, Brasil
Eliete Cristina Rezende Costa
Prefeitura de Belo Horizonte, Brasil
Flavia Guimaraes
Secretaria Planejamento do Estado de Minas Gerais, Brasil

A Burocracia de Nível de Rua na Implementação do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF): Percepções e Traduções de Normativas nas Políticas Públicas

Administração Pública e Gestão Social, vol. 14, núm. 2, 2022

Universidade Federal de Viçosa

Recepción: 27 Abril 2021

Aprobación: 07 Octubre 2021

Publicación: 07 Abril 2022

Resumo: Objetivo da pesquisa: O artigo analisa a implementação do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), no âmbito da política de assistência social, a partir das percepções de burocratas de nível de rua de dois Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) de um mesmo território em Belo Horizonte.

Enquadramento teórico: A pesquisa foi realizada a partir da revisão de conceitos presentes na literatura sobre implementação de políticas públicas e burocracia de nível de rua.

Metodologia: Trata-se de um trabalho de natureza qualitativa, com realização de pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas, analisadas por meio do método da análise de conteúdo.

Resultados: A pesquisa demonstrou haver consensos a respeito dos objetivos do PAIF e divergências quanto aos meios empregados para operacionalizá-los. As análises empreendidas mostraram que as normativas não bastam para orientar a entrega de uma política com baixa programabilidade. Dessa forma, o burocrata de nível de rua se constitui, ele mesmo, na principal tecnologia de intervenção da Assistência Social. Além disso, forneceram-se indícios de que a dimensão relacional afeta a atuação dos técnicos e usuários dos serviços, caracterizando a alta interação entre eles na operacionalização do serviço.

Originalidade: O estudo buscou abordar de forma integrada perspectivas teóricas para a compreensão do papel da burocracia de nível de rua na provisão de um serviço socioassistencial.

Contribuições teóricas e práticas: O entendimento das particularidades do caso analisado pode contribuir para a compreensão da burocracia que tem interface direta com a população, auxiliando no aprimoramento da política de assistência social.

Palavras-chave: Implementação, discricionariedade, burocracia de nível de rua, assistência social.

Abstract: Research objective: The article analyzes the implementation of the Service of Protection and Comprehensive Care to the Family (PAIF), within the scope of social assistance policy, from the perceptions of street-level bureaucrats of two Reference Centers for Social Assistance (CRAS) of the same territory in Belo Horizonte.

Theoretical framework: The research was conducted by reviewing concepts present in the literature on public policy implementation and street-level bureaucracy.

Methodology: This is qualitative research, with documentary research and semi-structured interviews, analyzed using the content analysis method.

Results: The research showed that there is consensus about the goals of the PAIF and disagreement about the means employed to operationalize them. The analyses realized showed that regulations are not enough to guide the delivery of a policy with low programmability. In this way, the street-level bureaucrat becomes, itself, the main intervention technology of Social Assistance. Moreover, evidence was provided that the relational dimension affects the performance of technicians and service users, characterizing the high interaction between them in the operationalization of the service.

Originality: The study aimed to address in an integrated manner theoretical perspectives for understanding the role of street-level bureaucracy in the provision of a social welfare service.

Theoretical and practical contributions: Understanding the particularities of the case analyzed can contribute to comprehend the bureaucracy that has a direct interface with the population, helping to improve the social welfare policy.

Keywords: Implementation, discretionary, street-level bureaucracy, social assistance.

Resumen: Objetivo de la investigación: El artículo analiza la implementación del Servicio de Protección y Atención Integral a la Familia (PAIF), en el marco de la política de asistencia social, a partir de las percepciones de los burócratas de calle de dos Centros de Referencia de Asistencia Social (CRAS) del mismo territorio en Belo Horizonte.

Marco teórico: La investigación se llevó a cabo a partir de la revisión de conceptos presentes en la literatura sobre la aplicación de políticas públicas y la burocracia a nivel de calle.

Metodología: Se trata de una investigación cualitativa, con investigación documental y entrevistas semiestructuradas, analizadas mediante el método de análisis de contenido.

Resultados: La investigación demostró que existe un consenso sobre los objetivos del PAIF y un desacuerdo sobre los medios utilizados para ponerlos en práctica. Los análisis realizados mostraron que la normativa no es suficiente para orientar la aplicación de una política con poca programabilidad. Así, el burócrata de calle se constituye en la principal tecnología de intervención de la Asistencia Social. Además, se ha demostrado que la dimensión relacional afecta a la actuación de los técnicos y de los usuarios del servicio, caracterizando la alta interacción entre ellos en la operacionalización del servicio.

Originalidad: El estudio pretendía abordar de forma integrada las perspectivas teóricas para comprender el papel de la burocracia de calle en la prestación de un servicio de asistencia social.

Aportes teóricos y prácticos: El conocimiento de las particularidades del caso analizado puede contribuir a la comprensión de la burocracia que tiene una interfaz directa con la población, ayudando a mejorar la política de asistencia social.

Palabras clave: Implementación, discreción, burocracia a nivel de la calle, asistencia social.

1 INTRODUÇÃO

A política de assistência social integra a seguridade social no Brasil juntamente com a política de saúde e previdência social, delimitando o campo da proteção social não contributiva no país. Desde 2004, constitui-se como Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e tem como principal entrega o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), objeto do presente artigo. O foco consiste em analisar esse serviço a partir da atuação dos agentes implementadores, na ponta da política, compreendendo a percepção dos mesmos sobre as normativas e como operam sua tradução, em estratégias e ações.

A partir de uma revisão sistemática da literatura sobre a atuação da burocracia de nível de rua no PAIF, foram identificados estudos que observam tal política sob perspectivas diversas. Alguns enfatizam que fatores institucionais e organizacionais, o perfil dos burocratas e o entendimento acerca dos objetivos e resultados do serviço, influenciam na execução da política pública (Silva, 2017; Ferreira, 2016). Outros, acentuam a diversidade das formas pelas quais os serviços são executados, enfatizando que a ação discricionária diante das demandas locais tem grande importância para as médias de execução do serviço. Nesse sentido, a formalidade e a profissionalização da burocracia importam, mas a interação dos implementadores com os usuários tem grande peso (D’Albuquerque, 2017). Outro estudo foca mais especificamente nas percepções dos burocratas de rua e de como tais percepções relativas às concepções de classe, gênero e raça podem reiterar ou aprofundar as desigualdades sociais; enfatizando que os valores e princípios dos agentes institucionais condicionam de forma determinante a provisão da política pública (Pereira, 2020).

Determinadas políticas se constituem como ‘sistemas frouxamente articulados’, pois apresentam um distanciamento maior entre as normas prescritas e as práticas realizadas pelos operadores, sendo que muitas vezes essas práticas destoam do que está prescrito e normatizado. Weick (1979), com a concepção de enactment, nomeia o processo de ação-interpretação a partir do qual os agentes de políticas públicas vão interpretando eventos, atribuindo significados e configurando suas experiências. Para esse autor, no campo do institucionalismo organizacional, tem-se que “a organização não existe como um ente estável, mas como resultado de “comportamentos entrelaçados” imersos em processos condicionalmente relacionados” (Grigoletto & Alves, 2019, p. 253).

Berman (1978) utiliza a categoria de grau de incerteza das tecnologias para se referir à incerteza dos operadores quanto aos meios mais adequados para a produção dos fins desejados. A política de assistência social se caracteriza como uma política pública que concentra relevante discricionariedade nos implementadores frente à entrega dos serviços, e se constitui como uma política com alto grau de incerteza sobre os meios e fins, no qual ganham centralidade as ações dos implementadores, principalmente, os que operam no nível de rua, que interpretam e traduzem as normativas em ação.

O presente artigo se situa nesse campo de investigação, analisando a percepção dos técnicos quanto ao grau de conflito entre os objetivos anunciados na política e os meios pretendidos para alcançá-los, bem como as estratégias por eles utilizadas para tradução das intenções presentes nas normativas da política em ações concretas. Quais são as percepções dos técnicos do PAIF sobre os objetivos do serviço e como essas percepções afetam a tradução que fazem dessas normativas?

Considerando as chaves analíticas da produção acadêmica sobre PAIF e burocracia de nível de rua, a análise das ações empreendidas pelos técnicos desse serviço socioassistencial poderá contribuir com o debate em torno do papel desses agentes na efetividade da política pública e de sua capacidade de operacionalizar seus objetivos, ainda que sejam permeados por fortes conteúdos de subjetividade. A natureza dos serviços socioassistenciais é de baixa programabilidade e de alta interação (Nogueira, 1998), o que adensa o caráter estratégico do burocrata de rua (Lipsky, 2010), aqui entendido como os técnicos de ponta do PAIF.

Para alcance do objetivo estabelecido, o artigo está estruturado em seções que compreendem a revisão da produção teórica relacionada ao tema, a caracterização da política pública em análise, a descrição dos procedimentos metodológicos, as análises realizadas e as considerações finais.

2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS

A presente seção de destina à apresentação dos aportes teóricos que dão sustentação às análises empreendidas sobre as percepções e as traduções realizadas pelos agentes operacionalizadores do PAIF. É feita uma breve revisão sobre a implementação de políticas públicas, seguida pela caraterização dos burocratas de nível de rua.

2.1 Implementação de políticas públicas

A análise da implementação de políticas sociais vem se tornando mais expressiva na agenda de pesquisa sobre o Estado e a provisão de políticas públicas (Lotta, 2019a; Faria, 2012; Lima & D'ascenzi, 2013; Velarde, 2007; Ferreira & Medeiros, 2016). Desde a década de 70, com a publicação do trabalho de Pressman e Wildavsky (1973), o campo da implementação tem sido visto como um objeto de análise em si mesmo, como etapa na qual as ideias formuladas ganham materialidade nas ações desenvolvidas por agentes da burocracia situados em diversos níveis de gestão.

A crítica sobre análises excessivamente lineares e racionais (Pereira, Lotta, & Bichir, 2018), colocou em evidência dois modelos teóricos com enfoques distintos quanto ao ciclo tradicional de políticas públicas: top down e bottom up. A primeira escola partia da concepção de que a política, uma vez formulada, seria conformada a partir de processos técnicos para sua operacionalização (Lotta, 2019a; Lima & D'ascenzi, 2013). As análises se concentram no exame das normas que definem a política pública e na busca de variáveis que expliquem o sucesso ou fracasso de tais políticas. Nessa perspectiva, o controle, o limite e a regulação da discricionariedade dos agentes implementadores, são fundamentais para garantir a execução correta das atividades previstas (Silva & Melo, 2000).

A perspectiva bottom up, por sua vez, concentrou-se no papel do nível local para o sucesso das políticas públicas (Matland, 1995). Os estudos de segunda geração, marcados, sobretudo, pelo trabalho de Lipsky na década de 1980, sustentam que as políticas públicas não são exatamente o resultado do que foi definido na fase de formulação, mas sim, o que emerge das decisões, das rotinas e dos instrumentos que os burocratas do nível da rua criam para enfrentar incertezas, dilemas e pressões com que se deparam durante a implementação. Nesse sentido, o foco está na ação dos agentes implementadores, dentre os quais se tem a centralidade dos burocratas de nível de rua (street level bureaucracy). Esse termo foi cunhado por Lipsky (2010) para identificar os burocratas que interagem diretamente com os usuários das políticas, com um grande poder de decisão sobre os rumos da ação, configurando uma dimensão explicativa central para os resultados das políticas.

Uma terceira onda de estudos buscou combinar as contribuições dos dois campos teóricos. De acordo com Pereira, Lotta e Bichir (2018), Matland é uma referência ao trazer a perspectiva de análise do contexto de implementação, considerando a ambiguidade e o conflito como elementos inerentes aos processos de implementação. Matland (1995) resgata os estudos de Elmore (1982, 1995) que sugerem a inclusão das interpretações dos implementadores no desenho na política, dimensão importante para a presente análise.

Há uma quarta geração de estudos sobre os processos de implementação, que se caracterizam por uma multiplicidade de abordagens e ênfases, com maior presença da perspectiva sociológica para o entendimento de tais processos (Lotta, 2019b). Com inspiração na sociologia do guichê francesa, a implementação passa a ser percebida como um processo essencialmente interativo em que ocorre uma construção social produzida por múltiplos atores. As interações entre os agentes públicos e os usuários são entendidas pela lente da coprodução, em outras palavras, da construção simbólica de perfis e lugares sociais.

Considerando uma abordagem mais recente do tema, cabe mencionar os estudos de Stone (2002), Yanow (2003) e Schneider e Ingram (2005). Os autores argumentam que há uma categorização dos usuários baseada não apenas em definições do Estado e critérios técnicos e oficiais, mas também a partir da cosmovisão dos implementadores (Pires & Lotta, 2019). Dessa forma, o merecimento e o direito às políticas são construções sociais, que envolvem percepções dos agentes públicos, status social, motivação e engajamento dos usuários em relação às políticas (Schneider & Ingram, 2005 como citado em Lotta, 2019b).

Além da compreensão sobre as correntes de interpretação da etapa de implementação, as contribuições teóricas de Berman (1978) também são um eixo teórico importante para a análise aqui empreendida. O autor identifica algumas variáveis que contribuem para o surgimento dos problemas de implementação. Para o autor, tais problemas são provenientes de três fontes: “(1) ambiguidade nos objetivos da política resultante ou causado pela compreensão inadequada, confusão ou conflito de valores; (2) participação de muitos atores com autoridade sobreposta; (3) resistência dos implementadores, ineficácia, ineficiência” (Berman, 1978, p. 3).

A ambiguidade apontada por Berman se refere ao grau de incerteza sobre a validade à qual a teoria ou a tecnologia da política se fundamenta. Para o autor, quanto maior o grau de incerteza, maior a discricionariedade do operador. A discricionariedade se situa, então, como uma atitude crucial adotada pelos implementadores frente à necessidade de se atender as demandas da população beneficiária da política.

Essa perspectiva encontra ressonância em Nogueira (1998), que sugere duas dimensões de análise para identificar a natureza da política. A primeira é a programabilidade das tarefas, o grau em que tais tarefas são passíveis de rotinização; a segunda, com a interação que se estabelece entre operadores e usuários, sendo tal interação mais necessária quanto mais se deseja alterar atributos da população atendida (Nogueira, 1998, pp. 15 e 16). A política de assistência social, objeto deste estudo, se caracteriza pela baixa programabilidade das tarefas e alta interação entre técnicos e usuários. Portanto, no âmbito dessa politica, a dimensão da percepção dos operadores da política sobre os objetivos da mesma se torna muito estratégica de ser compreendida, pois tais percepções impactam ou incidem diretamente na tradução que os burocratas do nível de rua fazem das normativas.

2.2 Burocracia de nível de rua

No presente artigo, tem-se a centralidade dos burocratas de nível de rua (Lotta, 2012a; Oliveira, 2012; Ferreira & Medeiros, 2016) entendidos como atores capazes de transformar, adaptar as políticas e conformar os resultados dessas políticas, uma vez que realizam, no trabalho cotidiano, a mediação necessária entre o acesso aos direitos por parte dos usuários e a estrutura estatal.

A discricionariedade dos burocratas aparece como elemento central e acontece a partir da produção de novos sentidos elaborados pelos profissionais a respeito do arcabouço normativo existente. Além disso, tem-se o peso das influências inevitáveis do ambiente no qual se efetiva a entrega dos serviços, bem como a presença dos interesses pessoais do burocrata e as relações que se produzem entre todos os atores envolvidos. Lotta (2012a) aponta, ainda, os diferentes estilos de interação, sendo que um está mais voltado a um padrão formal de interação e o outro se vincula a um estilo informal, que possa facilitar a construção de vínculos entre ambos.

A discussão sobre a discricionariedade dos burocratas de nível de rua se alinha com uma tensão entre regulação e autonomia (Lotta, 2012b), que se torna ainda mais impactante ao se considerar a natureza da assistência, face ao esforço dos níveis centrais em tipificar os serviços em contraposição à necessidade do nível local em desenvolver estratégias para alcançar os objetivos traçados.

Outra perspectiva, que tem como aspecto central os valores e as normas (Lotta & Pires, 2020). Maynard-Moody e Musheno (2003, 2012 como citado em Lotta e Pires, 2020), categorizam a atuação dos agentes públicos apontando a state-agent narrative – em que a discricionariedade serve para adaptar leis, regras e objetivos à situação local; e a citizen-agent narrative – em que os agentes públicos primeiramente atribuem identidades aos usuários para julgar quem são os merecedores do acesso aos serviços, baseando-se em visões imaginadas sobre o público.

Ao menos quatro chaves teóricas estão presentes na revisão realizada: estudos sobre a implementação, problemas identificados nessa etapa, natureza da política pública e burocracia de nível de rua. O esquema da Figura 1 busca sintetizar os conceitos analisados.

Figura 1: Chaves teóricas: burocracia de nível de rua e implementação de políticas públicas
Figura 1: Chaves teóricas: burocracia de nível de rua e implementação de políticas públicas

3 A POLÍTICA E O PAIF

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) se orienta para a garantia de proteção social aos cidadãos contra riscos sociais inerentes aos ciclos de vida e para o atendimento das necessidades sociais (MDS, 2005). A implantação do Sistema Único de Assistência Social, em 2004, representou um expressivo marco para concretização de seu campo de atuação.

O sistema é organizado em dois níveis de complexidade, com serviços de proteção social básica e serviços de proteção social especial. Os primeiros são caracterizados pela baixa complexidade e tem como objetivos “prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários” (Brasil, 2004 p. 33). Os serviços são realizados no CRAS, sendo o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) o norteador e a principal oferta no âmbito da proteção básica. Trata-se de “trabalho social com famílias, de caráter continuado, com a finalidade de fortalecer a função protetiva das famílias, prevenir a ruptura dos seus vínculos, promover seu acesso e usufruto de direitos e contribuir na melhoria de sua qualidade de vida” (CNAS, 2009, p. 6).

Por sua vez, os serviços de proteção social especial, de média e alta complexidade, são desenvolvidos no Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).Os municípios são os responsáveis pela provisão direta dos serviços socioassistenciais, que são operados por técnicos contratados pelo município, seguindo critérios e definições da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (MDS, 2005) e Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB/RH) (CNAS,2006).

É possível perceber, a partir das normativas que definem a política, assim como em suas diretrizes, que os objetivos pretendidos são de natureza pouco tangível, uma vez que buscam fortalecer a função protetiva, fortalecer vínculos e desenvolver potencialidades. A NOB-SUAS (MDS, 2012) define a especificidade da política, considerando que ela deve prover cinco garantias; e a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (CNAS, 2009), define que o PAIF teria relação com três delas, a saber: de acolhida, de convívio, de desenvolvimento da autonomia, sendo as outras duas relativas à segurança de renda e à segurança de apoio e auxílio, que seriam benefícios de natureza monetária. As concepções de seguranças introduzem, para a oferta de proteção social de Assistência Social, elementos de natureza relacional configurando intervenções que ultrapassam a prestação de bens e serviços “materiais” historicamente prestados por essa política pública.

Os documentos normativos que orientam a oferta dos serviços oferecem insuficientes referências para a sua operacionalização, embora representem expressivo avanço no sentido de padronização das ações próprias ao campo dessa política. Por se tratar de uma política cuja tecnologia pode ser classificada como de caráter brando – quando se tem pouca certeza sobre o que é necessário fazer para alcançar os fins desejados –, a Assistência Social conta de maneira singular com o papel de seus operadores e dos técnicos que se encontram na linha de frente na relação com os usuários. Se as ações dos agentes são centrais para análise do processo de implementação de toda e qualquer política pública, torna-se, nesse caso, ainda mais central.

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A presente pesquisa é de natureza qualitativa. A primeira etapa se constituiu da realização de pesquisa documental sobre a legislação e demais documentos institucionais da política de Assistência Social, produzidos tanto no âmbito da União como também pelo órgão gestor da política em Belo Horizonte. Buscou-se, a partir dessa análise, identificar como as normativas estabelecem os objetivos da política e o grau de padronização das ações a serem realizadas.

Posteriormente, foi desenvolvido um instrumento de coleta de dados, usado para realização de entrevistas semiestruturadas com nove técnicos de nível superior que exercem a função de “equipe de referência do CRAS” em dois equipamentos selecionados para a pesquisa, localizados em uma mesma regional da cidade. Foram entrevistados seis assistentes sociais e três psicólogos, sendo: quatro assistentes sociais e um psicólogo do CRAS A, e dois assistentes sociais e dois psicológos do CRAS B. Cabe esclarecer que os profissionais selecionados são diretamente responsáveis pela operacionalização do PAIF.

A regional considerada para o trabalho de campo tem cerca de 308 mil habitantes e conta com quatro CRAS. A escolha dos CRAS foi motivada pelos dados de atendimento do PAIF no ano de 2015, informados ao CENSO CRAS, que é um instrumento de monitoramento e avaliação da política de Assistência Social realizado pelo Ministério da Cidadania, a partir dos quais os dois CRAS escolhidos foram os que apresentaram melhor desempenho no que se refere ao maior número de famílias atendidas no mês de referência do CENSO. Optou-se por selecionar dois CRAS de uma mesma regional tendo em vista a perspectiva de “isolar” a atuação dos técnicos das influências das diferentes estruturas técnicas e políticas existentes nas nove regionais do município.

A pesquisa foi realizada durante o ano de 2016. O processo de codificação constitui parte da organização do material produzido, sendo justificado em função da natureza da observação e das intenções da pesquisa (Laville & Dionne, 1999). Dessa forma, a partir das categorias de análise do referencial teórico foi elaborado o roteiro da entrevista semiestruturada. Esse roteiro contou com 18 perguntas que versaram sobre o processo de planejamento das ações (existência do planejamento, uso do planejamento no cotidiano do trabalho, relação entre o planejado e o efetivamente realizado); sobre a rotina do trabalho e o quanto as ações desenvolvidas são ou não previsíveis no cotidiano; sobre os objetivos do PAIF e sobre os desafios para alcançá-los na prática; sobre os resultados percebidos a partir das ações desenvolvidas; sobre as estratégias as quais as equipes lançam mão para buscar alcançar os resultados da política. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas, sendo utilizada a análise de conteúdo (Yin, 2001), uma técnica que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. Para tanto, as respostas dos entrevistados foram categorizadas, em um quadro, a partir das correlações estabelecidas com as chaves teóricas adotadas. A organização dos resultados também se deu a partir da categorização dos conceitos-chave e da identificação desses conceitos no conteúdo das respostas. A pesquisa empírica não permitiu generalizações sobre o processo de implementação do PAIF em todo o município, mas possibilitou conhecer as percepções dos profissionais responsáveis pela execução do PAIF quanto aos objetivos do serviço e os meios para alcançá-los, considerando as chaves teóricas escolhidas para análise.

5 RESULTADOS

Nas seções anteriores, foi apresentado um quadro de referências teóricas que combina conceitos-chave sobre burocracia de nível de rua e implementação de políticas públicas. Esta seção se dedica à apresentação dos resultados e, para facilitar a compreensão, foi dividida em tópicos que contemplam as variáveis selecionadas, considerando o ponto de partida da pesquisa, qual seja, as percepções dos técnicos do PAIF sobre os objetivos do serviço e como traduzem tais percepções em estratégias de ação em uma política cuja natureza é de baixa programabilidade e alta interação.

5.1 Conflito entre objetivos e meios

Um primeiro ponto de análise acerca da percepção dos BNR, refere-se ao grau de conflito entre objetivos e meios. Conforme visto na primeira seção, uma das variáveis que afeta a implementação se refere à “ambiguidade nos objetivos da política” (Berman, 1978, p. 3).

Observando o exercício discricionário dos técnicos face à ambiguidade de objetivos, foram analisadas as visões dos técnicos sobre os objetivos do PAIF, os instrumentos e as estratégias de intervenção adotadas. Ao examinar a percepção dos entrevistados em torno do grau de conflito entre os objetivos anunciados e os meios pretendidos para alcançá-los, buscou-se identificar possíveis alinhamentos ou divergências entre as concepções anunciadas pelos documentos normativos e a visão dos profissionais em torno dessas concepções.

O exercício discricionário do profissional da ponta ganha relevância. A discricionariedade do BNR é entendida aqui como a tomada de decisão e a definição de meios e estratégias mais adequados para alcançar os objetivos postos, perpassando pela visão que se constrói em torno dos objetivos da política e do próprio PAIF. Para os entrevistados, sobretudo de um dos CRAS, parece haver uma desconexão entre os objetivos anunciados pelo serviço e os meios para alcançá-los. Há uma descrença quanto à atuação do PAIF nas dimensões relacionais da vulnerabilidade diante de um contexto de exposição às desigualdades e de negação de direitos sociais básicos, como se pode perceber a partir do relato de dois entrevistados.

Mas eu acho que não tem nem o que explicar, é meio irreal, se não consegue nem o básico, se não consegue nem dar a comida como que vai trabalhar o vínculo familiar na família, na criança que tá ali chorando de fome? (Técnico 04, CRAS B)

É contraditório, né? Num território em que as pessoas têm que se afastar de muitas coisas, querer proporcionar o vínculo, o fortalecimento de vínculos... (Técnico 03, CRAS B)

Por outro lado, para os profissionais do CRAS A, o objetivo anunciado de fortalecimento de vínculos familiares e comunitários representa um meio de garantia de acesso e atendimento aos direitos sociais. Os relatos permitem considerar que o fortalecimento de vínculos não seria um fim em si mesmo e sim um meio pelo qual as intervenções promovidas pelo serviço possam garantir que o usuário alcance maiores patamares de acesso aos direitos.

Acho que o nosso objetivo é... A gente consegue fazer isso pondo o usuário pra refletir sobre a vida dele, sobre a vida, sobre a realidade e sempre lembrando que é usuário/indivíduo, usuário/família, usuário/Comunidade. (Técnico 03, CRAS A)

O PAIF tenta trazer algumas famílias pra mais perto das Políticas Públicas, tirar elas de uma situação passiva em relação à vulnerabilidade. (Técnico 02, CRAS A)

Desses objetivos o que eu acho que a gente tem formas mais concretas de fazer é o acesso a direitos, a questão dos vínculos e da função protetiva, o acesso a direito pra mim é o que mais contribui pra função protetiva, sabe? (Técnico 01, CRAS A)

Os relatos trazem à tona a dificuldade de consenso em torno da oferta do serviço. O que o PAIF tem a oferecer de fato? Trata-se de um espaço restrito à escuta das demandas trazidas pelos usuários? Para além dos encaminhamentos realizados, qual é a intervenção própria do PAIF? As respostas a essas questões são dadas de diferentes formas pelos profissionais. Conforme interpretam e compartilham os objetivos anunciados pela política, os técnicos se engajam e se comprometem com a produção de sentido e significado para o trabalho que executam. Uma das questões relacionadas a essa ambiguidade quanto aos objetivos do serviço, refere-se à fragilidade dos instrumentos normativos e metodológicos. A equipe do CRAS B aponta alguns fatores que podem comprometer o alcance das intenções anunciadas para o PAIF e que se relacionam às tecnologias disponíveis para o desenvolvimento do trabalho. As orientações disponíveis para direcionar metodologicamente os profissionais quanto às atividades que compõem o desenvolvimento do trabalho social com famílias, carecem de instrumentos de verificação quanto à validade e à eficácia dos impactos produzidos. Dessa forma, a incerteza em torno do alcance ou não dos objetivos pretendidos permeia todo o processo de execução do trabalho cotidiano e implica, muitas vezes, em conflitos entre os atores envolvidos acerca da definição dos meios mais ou menos adequados a serem utilizados.

Tem que ser mais bem estruturado, para que minimamente os objetivos alcancem realmente a população. Até o momento eu vejo, eu sinto que é gestão pela gestão. Tudo que é posto é muito bacana, mas na prática é muito diferente. (Técnico 03, CRAS B)

Eu não vejo assim que isso tudo vai me instrumentalizar, me dar condições de trabalhar a família e conseguir com que tenha um resultado no trabalho. (Técnico 02, CRAS B)

A percepção a respeito das tecnologias a serem utilizadas no desenvolvimento do trabalho não assume o mesmo grau de inadequação à realidade, na visão dos profissionais do CRAS A. O relato de todos os entrevistados desse CRAS revela convergência entre as atividades prescritas e as realizadas na prática.

Eu acho que as pessoas que fizeram esses textos, que redigiram, elas tiveram uma inspiração muito grande pra editar estes textos, né? Tudo que a gente mantém, tenta fazer aqui, que a gente faz, que a gente tenta executar é pertinente ao que tá escrito... A gente consegue se identificar na prática com o que tá na teoria lá, né? (Técnico 05, CRAS A)

Nota-se, claramente, a presença de divergências em torno das seguintes questões: as atividades prescritas para a realização do PAIF são adequadas para subsidiar o profissional a desenvolvê-las? São também suficientes para alcançar os objetivos postos para o serviço? Na perspectiva dos BNR, as normativas são ambíguas quanto aos objetivos da política, com definições genéricas que pouco contribuem para a sua tradução na prática e no cotidiano do trabalho social com famílias, como é o caso dos agentes no CRAS B.

O fato é que, mesmo com referências normativas amplas e imprecisas, o trabalho acontece. E acontece a partir do fazer cotidiano das equipes do CRAS que, na medida do possível, buscam soluções para lidar com a ambiguidade de objetivos e dos meios para alcançá-los, repactuando acordos e revendo caminhos em direção ao atendimento das demandas que o território impõe, como parece ser o caso do CRAS A.

5.2 Programabilidade das ações

Quando à programabilidade, buscou-se identificar como os BNR percebem o planejamento elaborado no CRAS, a organização da rotina de trabalho, o grau de controle das tarefas e a análise que fazem do tempo gasto em atividades meio versus atividades fim do serviço. As entrevistas corroboram a ideia de que a natureza da política não permite um procedimento padronizado de ação e nem mesmo um grau de controle sobre o cotidiano do trabalho, que é sempre atravessado por demandas heterogêneas, seja por parte dos usuários da política ou dos demais operadores da mesma. Uma questão surge de imediato: como implementar uma política de massa, com níveis muito baixos de programabilidade e que atende centenas de famílias com demandas muito distintas? Como viabilizar, ao mesmo tempo, a tipificação necessária das ações e serviços e a flexibilidade para acolher e responder a demandas diversas?

Pela própria natureza do trabalho do PAIF, o grau de rotinização ou padronização das tarefas é baixo. Buscou-se, aqui, identificar a percepção que os técnicos constroem a respeito da rotina de trabalho, do grau de controle que assumem em torno das tarefas e da autonomia que possuem para alterá-las.

Para os entrevistados, as demandas de trabalho que se apresentam ao CRAS no cotidiano, muitas vezes desviam a atenção dos profissionais das ações que foram planejadas, o que exige esforço maior de organização e monitoramento do trabalho como um todo, em permanente diálogo com o plano de ação. Obviamente que alterações na oferta de alguma atividade, fruto da leitura de demandas do território e das famílias atendidas, são reconhecidas como necessárias e importantes, como expressa a fala dos técnicos:

Porque assim, é interessante, a gente não executar as coisas que estão no plano de ação, mas a gente executa várias outras, então, pra mim é perfeitamente razoável que aquilo que eu tinha previsto no começo do ano ou no ano anterior que seria interessante ou prioridade, a gente constate que não é, e mude, né? Plano é pra mudar mesmo, né? (Técnico 02, CRAS A)

Aqui a gente consegue desenvolver o planejamento e até as coisas que não foram planejadas a gente consegue fazer também. Porque a gente tem que ter essa abertura. Se a gente fica preso só no que foi planejado, as outras coisas que vão chegando pra nós, a gente pode não conseguir absorver e que são às vezes mais importantes do que o que a gente tinha pensado antes. (Técnico 01, CRAS A)

Tem-se, portanto, que os fatores que afetam a autonomia do técnico em relação ao processo de planejamento e execução de seu trabalho, podem ser verificados não só nas ações mais gerais definidas a partir do plano de ação, como também nas atividades cotidianas no nível do micro planejamento. Também nesse aspecto, observam-se importantes diferenciações entre um CRAS e outro. Para os técnicos do CRAS A, embora o processo de trabalho seja permeado por situações imprevistas e que fogem ao escopo do planejamento realizado, a equipe é constituída de autonomia para buscar soluções para os problemas que se apresentam e alterar uma rotina previamente estabelecida. A leitura que eles fazem em relação ao caráter mais ou menos fixo da rotina de trabalho, contribui para que o exercício discricionário diário ocorra a partir de decisões tomadas por eles mesmos, como evidencia a fala de dois dos técnicos:

Minha rotina de trabalho é bastante dinâmica, né? Porque toda semana a gente planeja nossas atividades, a gente senta em reunião de equipe, né? E define nossa agenda semanal. Então a gente tem essa autonomia em equipe de decidir isso e temos autonomia individual também (Técnico 05, CRAS A).

A gente tem as reuniões de equipe que também já estabelecem uma rotina pra gente. A gente tem uma flexibilidade grande, inclusive pra atendimentos também. Qualquer coisa que a gente propõe assim, que não conseguiu encaixar dentro da nossa agenda, a gente tem autonomia pra fazer, acho que a nossa autonomia é muito grande. (Técnico 02, CRAS A)

Para a equipe do CRAS B, a organização interna do processo de trabalho é frequentemente interrompida por demandas externas, para as quais nem o técnico individualmente, nem a equipe em conjunto, conseguem modificar. Nesse caso, a percepção dos entrevistados é de que não possuem autonomia para programar o cotidiano de trabalho que, via de regra, se encontra à mercê da imprevisibilidade das demandas externas ao equipamento.

Temos uma agenda, porém as atividades aqui do CRAS são muito inconstantes. De repente surge reunião lá na regional, vou ter que ir, ai não dá pra seguir essa agenda. Muda muito essa agenda. (Técnico 02, CRAS B)

Tem uma escala de atendimento, né? E de acordo com o que vem... com o que é posto pelos outros gestores, né? Numa gestão imediata a gente altera. Mas, mediante isso, né? Mediante à outros afazeres. Mas, nada que seja posto pela “gente”. (Técnico 03, CRAS B)

Observa-se que, ainda que os equipamentos se encontrem sob uma orientação e normatização mais genérica em relação ao processo de planejamento das atividades, recai sobre a equipe a busca por alternativas e soluções em torno da regulação necessária entre a autonomia interna da equipe e o atendimento às demandas apresentadas no cotidiano. Isso ocorre seja pelo contexto institucional, seja por demandas próprias ao território onde cada equipamento se localiza.

Além da dimensão mais específica da programabilidade das ações, um elemento que afeta a provisão dos serviços se refere ao ambiente político, institucional e de gestão, que condicionam a oferta. Para os entrevistados, o cenário institucional ao qual se encontra vinculada a oferta do PAIF, tem sido permeado por conflitos de interesses e divergências em torno da natureza do trabalho a ser desenvolvido, o que gera confusão no cotidiano do serviço, conforme os depoimentos a seguir:

Nós temos um gerente de políticas sociais que interfere de acordo com os interesses dele, mas, não tem um olhar para a assistência. Temos uma Secretaria que é geral, temos a GPSOB, mas ai tem a GPAS que também interfere, o BH Cidadania que interfere. Então, assim, é muita gente interferindo, muitas vezes nós já deixamos de atender coisas referentes ao CRAS para atender necessidades, outros interesses. (Técnico 2, CRAS B).

Os Comandos são divergentes e isso atrapalha muito. Nós temos a Secretaria de Políticas Sociais e temos a Secretaria Municipal Adjunta de Assistência Social, né? E ambas não conversam muito bem, isso acaba afetando diretamente nosso trabalho. (Técnico 5, CRAS A).

A dimensão da gestão, seja das rotinas e do planejamento interno ao CRAS ou dos demais atores envolvidos na provisão de políticas, seja no nível central ou nos territórios, condiciona a ação dos técnicos na ponta, afetando o cotidiano do serviço. Esse ponto encontra ressonância no segundo ponto que, segundo Berman (1978), afeta negativamente a implementação: a participação de muitos atores com autoridade sobreposta.

5.3 Interação entre técnicos e usuários

No que se refere à elevada interação do técnico do PAIF com o usuário, importa conhecer como os técnicos identificam essa questão no cotidiano do trabalho e de que maneira eles elaboram estratégias de construção de vínculos com os usuários. Considerando as formas de interação propostas por Lotta (2012a) e a baixa programabilidade da política, são desenvolvidas estratégias de aproximação junto aos beneficiários. Em virtude do caráter brando da tecnologia empregada para materializar objetivos e intenções da política, o trabalho do burocrata do nível da rua acaba por se constituir ele mesmo na principal “tecnologia” da assistência social.

São percebidas diferenças entre os dois contextos. Todos os técnicos entrevistados reconheceram que a alta interação intrínseca ao trabalho no PAIF representa importante oportunidade para a construção de vínculos com os usuários da política. Isso se dá não só pela própria natureza do trabalho, que requer contatos constantes com os destinatários do serviço por meio de entrevistas, participação em grupo, visitas domiciliares, entre outras atividades, como também pela necessidade de estabelecimento de estratégias de aproximação e comunicação necessárias ao funcionamento do serviço e de alcance de seus resultados.

A construção de estratégias de estabelecimento de vínculos com os usuários perpassa, pela análise das entrevistas, por duas características gerais que sugerem a existência de “estilos de interação” adotados pelos profissionais perante o contato direto com o usuário (Lotta, 2012a). Uma característica está mais voltada a um padrão formal de interação, sugerindo um estilo mais afeto ao perfil do burocrata clássico. A segunda se vincula a um estilo informal, por meio do qual o profissional procura lançar mão de algumas estratégias de aproximação do usuário que possam facilitar a construção de vínculos entre ambos.

Eu não tenho muito meio termo, não. É isso, é isso. Então vamos fazer da forma como tem que ser feita. Apesar de ser ruim em alguns aspectos, em alguns atendimentos, não é ruim não. Principalmente se o que a pessoa veio demandar aqui, não tem retorno. Se ela chega e não consegue minimamente compreender o que deve fazer ou alcançar o que ela veio fazer aqui, aí não tem nenhuma interação. Aí tem um afastamento muito grande. (Técnico 03, CRAS B).

Alguns técnicos adotam estratégias menos formais de aproximação com os usuários e tentam produzir relações mais horizontais pautadas pela criação de aprendizados e de apoio, de maior proximidade:

Aí eu estava conversando com um esses dias, aí eu chamo ele sempre de Alisson né, aí eu fui conversar com ele sobre o apelido dele, ele falou assim: “eu gosto muito de você, porque você me chama pelo nome, sabe”? (Técnico 01, CRAS A)

Ao buscar alterar atributos e comportamentos da população atendida, é necessário confiança, o que pressupõe, geralmente, interações contínuas entre técnicos e beneficiários. A dimensão relacional se apresenta também nas relações que as equipes do serviço estabelecem com a população do território. Como fica claro na fala de uma técnica de um equipamento, que é conhecida no município por sua presença no território:

Eu acho que o PAIF em si, por ele mesmo promove maior interação até mesmo porque a gente sai sempre pra rua, faz cortejo né? As ações comunitárias promovem esse grau de interação, porque não é só usuário que vem aqui né, nas visitas domiciliares a gente se aproxima bastante da vida cotidiana do usuário (...) (Técnico 03, CRAS A)

As entrevistas realizadas mostraram que, a depender da forma como se produzem as interações entre técnicos, usuários e os diversos atores que “orbitam” em torno do CRAS, a implementação assume distintas performances, com diferentes graus de proximidade e pessoalidade. Os estilos de interação são diversos e parecem sofrer influência, ao mesmo tempo, dos valores, percepções e backgrounds formativos distintos dos operadores da política, e dos constrangimentos de natureza institucional, como os processos de gestão internos e externos ao CRAS.

Entretanto, coerente com outros achados empíricos, a dimensão relacional na provisão dos serviços socioassistenciais importa para os resultados das ações. A pessoalidade e o contato direto dos burocratas com os cidadãos, em regiões com maior nível de pobreza e vulnerabilidade, levam à maior disposição em implementar a política, fato que, no limite, se expressa em maiores médias de execução do serviço (D’Albuquerque, 2017, p. 75).

No campo dos serviços socioassistenciais, os resultados alcançados dependem, sobretudo, da compreensão e da adesão dos técnicos aos objetivos da política e da “densidade relacional” que se estabelece entre técnicos e usuários dos serviços. Se o técnico não “acredita” no conjunto de valores e intencionalidades anunciadas pela política, sua prática retrata essa descrença, o que acaba por gerar desmotivação e, em alguns casos, falta de interesse em realizar as ações prescritas para que o PAIF aconteça. Com isso, tem-se o terceiro elemento apontado por Berman (1978), relativo à resistência dos implementadores, ineficácia, ineficiência das ações desenvolvidas; bem como à centralidade das percepções dos técnicos para a forma de provisão dos serviços (Pereira, 2020).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do artigo consistiu em apreender as percepções dos BNRs sobre os objetivos oficiais traçados pelas normativas e diretrizes da política de assistência social e as traduções realizadas na operacionalização dessa política, a partir do estudo de caso do PAIF em dois CRAS de Belo Horizonte. Buscou-se contribuir para o campo de estudos acerca do PAIF e dos BNRs, uma vez que atrela percepções dos agentes implementadores e a tradução que fazem das normativas a uma discussão sobre a natureza da política, vista sob a perspectiva da interação e programabilidade.

A pesquisa demonstrou haver consensos a respeito dos objetivos do PAIF e divergências quanto aos meios empregados para operacionalizá-los. O relato de todos os técnicos entrevistados foi unânime em relação à compreensão do papel do PAIF na prevenção às situações de vulnerabilidades e riscos sociais, por meio do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, em concordância com o que dispõem as normativas. Todavia, os alinhamentos em torno dos objetivos aos quais se propõe o serviço, não são facilmente traduzidos em meios de alcançá-los, situação que reforça o alto grau de conflito entre objetivos e meios, presente no processo de implementação.

Um dos aspectos que sustenta a divergência, dentre os técnicos, sobre os objetivos do serviço, está relacionado à própria natureza do PAIF, que tem desenho generalista (Silva, 2017). O que o PAIF oferece é de natureza relacional e subjetiva e, embora seja uma oferta relevante, pode ser insuficiente diante do contexto de privação, pobreza, vulnerabilidades e riscos aos quais as famílias estão sujeitas, o que sugere a necessária articulação e integração entre a oferta do serviço e outras provisões da política pública de assistência social e de outras políticas sociais. O encaminhamento das famílias aos outros serviços públicos, necessita de uma resposta por parte das demais políticas.

Os objetivos do PAIF são pouco tangíveis e isso eleva o grau de incerteza em relação às tecnologias adotadas para intervir e alcançar os objetivos almejados pelos documentos que compõem o arcabouço normativo da política. As ações previstas nos documentos do serviço, seja no âmbito federal ou local, são descritas de forma ampla e genérica e cabe aos agentes de ponta executá-las com alto grau de incerteza, sem saber ao certo se e como as ações realizadas contribuem para os objetivos pretendidos. Esse é um desafio com o qual os técnicos se deparam e que atravessa o cotidiano da prática. Uma questão fundamental se refere, portanto, à necessidade de desenvolver metodologias e tecnologias de intervenção que possam contribuir na operacionalização da concepção de segurança e sua tradução na oferta de serviços com uma intencionalidade mais clara para os envolvidos.

A partir de definições amplas, ambíguas e imprecisas, os profissionais da ponta, em seu exercício discricionário frente ao contato imediato e a interação com o usuário da política, vão tecendo os significados e construindo alternativas a partir da síntese que elaboram entre o que se encontra prescrito, o que trazem enquanto conjunto de valores pessoais e profissionais e o sujeitos reais que se colocam em sua frente, em territórios singulares e marcados por dinâmicas específicas e constrangidos por diferentes contextos institucionais (Costa, 2016).

As análises empreendidas nesta pesquisa mostraram que as normativas não bastam para orientar a entrega e que, nessa política, o burocrata de nível de rua se constitui, ele mesmo, na principal tecnologia de intervenção da Assistência Social. Conforme apontado anteriormente, tanto os fatores institucionais, quanto valores e princípios dos agentes governamentais, surgiram como variáveis relevantes para análise do papel dos burocratas de rua na produção do PAIF (Pereira, 2020; Silva, 2017).

Corroborando a literatura sobre o tema, os agentes de ponta redefinem as regras, elaboram novos sentidos para os serviços e, com isso, acabam por redefinir a oferta. O caso específico aqui analisado permite ampliar o conhecimento sobre os burocratas de rua e sobre a implementação de políticas de forma geral, ao trazer evidências de que as políticas, ainda que submetidas a um mesmo conjunto de prescrições normativas e limitações político-institucionais, existe uma ampla margem de ação para os técnicos de ponta, principalmente, por se tratar de políticas cuja principal “tecnologia” é mesmo o operador da política, em interação com os usuários

Embora a natureza qualitativa da pesquisa em tela não permita generalizações, a análise realizada a partir das percepções dos entrevistados reforça que o papel do burocrata do nível da rua na execução do PAIF, torna-se crucial para determinar as estratégias pelas quais o serviço será prestado. Esse achado é coerente com a literatura, ao incluir as interpretações dos implementadores no processo de redesenho da política (Elmore, 1982,1995, cidado por Matland 1995).

Duas equipes, em dois equipamentos de um mesmo território, demonstram distintos modos de ação, mesmo que expostas a uma situação similar em termos de demandas e necessidades das populações. Quando a equipe é mais alinhada e aderente aos objetivos da política, tende a ser mais propositiva nas intervenções e prioriza estratégias coletivas de intervenção: mais grupos, mais ações comunitárias. Além disso, tende a adotar relações de maior interação e proximidade com usuários e território. Ao contrário, quando os técnicos se mostram menos alinhados ou aderentes, ou “acreditam” menos na política, tendem a operar mais dentro dos equipamentos, em atendimentos particularizados, sem diálogo com o território, de forma mais burocrática e com menos proximidade com as usuárias. O que produz equipes com percepções tão distintas? O perfil do coordenador e a marca que imprime em sua gestão, são fatores que podem condicionar o comportamento da equipe, fato que pode ser compreendido e aprofundado em estudos posteriores.

Estudos mais recentes sobre o tema buscam compreender as cosmovisões dos operadores da política, bem como as assimetrias contidas na relação burocrata-usuário, buscando analisar seus impactos. Esse ponto é especialmente relevante em contextos de elevada desigualdade social, como é o caso do Brasil, na medida em que as políticas podem estar contribuindo não para reverter desigualdades, mas para aprofundá-las.

O artigo contribui para o debate no campo de estudos sobre implementação e BNR ao trazer, com ênfase, a dimensão da “produção de sentido” por meio das práticas cotidianas dos técnicos, entendendo o serviço do PAIF como algo que emerge das interações estabelecidas, sustentando uma perspectiva fenomenológica para compreensão das políticas públicas (Weick, 1979, citado por Grigoletto & Alves, 2019). Aqui se enfatizou a importância da percepção e, ao mesmo tempo, da tradução que os burocratas de rua fazem das normativas, a intencionalidade que permeia suas ações, a centralidade do grau de interação entre técnicos e usuários para a provisão dos serviços socioassistenciais, em um contexto de escasssa padronização ou rotinização das ações. Foi salientada a centralidade das dimensões intersubjetiva e relacional nesse processo, que certamente produzem efeitos e impactam os resultados da política.

REFERÊNCIAS

Berman, P. (1978). The study of macro and micro implementation of social policy. Santa Mônica, Califórnia: Rand Corporation.

Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). (2009). Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (Texto da Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009). Brasília: CNAS.

Costa, Eliete Cristina R. (2016). A implementação de serviços socioassistenciais: uma análise do PAIF e seus desafios para a garantia das seguranças sociais. Dissertação de mestrado, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, MG, Brasil.

D’Albuquerque, R. W. (2017). A demanda por serviços socioassistenciais e a burocracia da Assistência Social dos municípios brasileiros. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Faria, C. A. P. (2012). Implementação: ainda o “elo perdido” da análise de políticas públicas no Brasil. In Faria, C. A. P. (Org.), Implementação de políticas públicas. teoria e prática. Belo Horizonte: Editora PUC Minas.

Ferreira, V. R. S. (2016). Fatores influenciadores do comportamento de decisão e ação dos implementadores do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família - PAIF. Tese de doutorado, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

Ferreira, V. R. S., Medeiros, J. J. (2016). Fatores que moldam o comportamento dos burocratas de nível de rua no processo de implementação de políticas públicas. Cadernos EBAPE.BR (online), 14(3), 776-793.

Grigoletto, Fábio, Alves, Mário Aquino. (2019). Leitura do institucionalismo organizacional a partir da teoria do organizar de Karl Weick. Cad. EBAPE.BR, 17(2).

Laville, C., Dionne, J. (1999). A Construção do Saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Belo Horizonte: Editora UFMG.

Lima, L. L., D'ascenzi, L (2013). Implementação de políticas públicas: perspectivas analíticas. Revista de Sociologia e Política, 21(48), 101-110.

Lipsky, M. (2010). Street-level bureaucracy. dilemmas of the individual in public services. New York: Russel Sage Foundation.

Lotta, G. S. (2012a). Desvendando o papel dos burocratas de nível de rua no processo de implementação: o caso dos agentes comunitários de saúde. In C. A. P. Faria (Org.). Implementação de Políticas Públicas, teoria e prática. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas.

Lotta, G. S. (2012b). O papel das burocracias do nível da rua na implementação de políticas públicas: entre o controle e a discricionariedade. In C. A. P. Faria (Org.). Implementação de Políticas Públicas, teoria e prática. Belo Horizonte: Ed. PUC Minas.

Lotta, G. S. (2019a). Teoria e análises sobre implantação de políticas públicas no Brasil. Brasília: ENAP.

Lotta, G. S. (2019b). Práticas, interações, categorização e julgamentos: análise da ação discricionária dos agentes comunitários de saúde. In R. R. C. Pires (Org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Rio de Janeiro: Ipea.

Lotta, G. S., Pires, R. R. C. (2020). Categorizando usuários “fáceis” e “difíceis”: práticas cotidianas de implementação de políticas públicas e a produção de diferenças sociais. Dados,63(4), 1-40.

Nogueira, R. M. (1998). Los proyectos sociales: de la certeza omnipotente al comportamiento estratégico. Serie Políticas Sociales, 24.

Matland, R. E. (1995). Synthesizing the implementation literature: the ambiguity-conflict model of policy implementation. Public Administration Research and Theory: J-PART, 5(2), 145-174. Recuperado de https://pdfs.semanticscholar.org/2484/f1ac697055f00355d29c8f1137af1db3fcaf.pdf

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). (2005). Política Nacional de Assistência Social - PNAS/2004. Brasília: MDS.

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) (2012). Norma Operacional Básica: NOB-SUAS. Brasília: MDS.

Oliveira, A. (2012). Burocratas da linha de frente: executores e fazedores de políticas públicas. Rio de Janeiro. Revista de Administração Pública, 46(6),1551-1573.

Pereira, G. V. (2020). A interseccionalidade e os marcadores sociais de raça, classe e gênero nas concepções e práticas de profissionais e usuários de Centros de Referência de Assistência Social do município de Belo Horizonte. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Pereira, G. N., Lotta, G. S., Bichir, R. M. (2018). Implementação de políticas públicas no nível intramunicipal: o caso das Supervisões de Assistência Social da cidade de São Paulo. Revista Brasileira de Políticas Públicas e Internacionais, 286-311.

Pires, R. R. C., Lotta, G. (2019). Burocracia de nível de rua e (re)produção de desigualdades sociais: comparando perspectivas de análise. In R. R. C Pires (Org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Rio de Janeiro: Ipea.

Pressman, J. L., Wildavsky, A. (1973). Implementation. Berkeley: University of California Press.

Silva, L. C. (2017). A implementação do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família - PAIF: uma análise da atuação dos burocratas de nível de rua dos Centros de Referência de Assistência Social da Zona Leste de Belo Horizonte. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Silva, P. L. B., Melo, M. A. B. (2000). O processo de implementação de políticas públicas no Brasil: características e determinantes da avaliação de programas e projetos.. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, NEPP.

Velarde, J. C. C. (2004). Una mirada estratégica y gerencial de la implementación de los programas sociales. Anais do Congreso Internacional del Clad sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública (pp. 2-33), Madrid, Espanha.

Yin, R. K. (2001). Estudo de caso: planejamento e métodos (2a ed.). Porto Alegre: Bookman Companhia Editora.

Weick, K. (1979). The social psychology of organizing. Reading: Addison-Wesley.

HTML generado a partir de XML-JATS4R por